Não posso ser acusado de querer perseguir o primeiro-ministro. Ainda há três semanas elogiei a sua entrevista à SIC e não me recordo de ter escrito sobre ele algum texto hostil – do ponto de vista político ou pessoal.
No célebre caso da licenciatura defendi-o sempre, e considerei mesmo a questão «mesquinha» e «parola».
Enquanto muitos jornais (incluindo alguns considerados pró-socialistas) dedicavam sucessivas primeiras páginas ao assunto, o SOL não publicou sobre ele uma única manchete.
Conto, a propósito, um episódio _caricato.
Numa reunião com responsáveis do jornal que me questionavam pela diminuta importância que o SOL estava a dar ao tema, assumi com tal calor a defesa do primeiro-ministro que a cadeira escorregou e me estatelei no chão.
Quando me levantei, comentei para os meus colegas: «Se o Sócrates visse esta cena não acreditava».
Não posso, por isso, ser acusado de querer mal a José Sócrates ou de estar a contribuir para derrubar o seu Governo: sempre fui um convicto defensor da estabilidade política.
Só que este caso não é, como o da licenciatura, de natureza pessoal.
Este caso tem contornos muito graves, porque envolve uma decisão tomada ao nível do Estado, por um governante no exercício de funções oficiais, havendo suspeitas de que houve uma situação de favor em troca de elevadas quantias em dinheiro.
Não serei eu a acusar Sócrates: essa função cabe à Justiça, se o decidir fazer.
Até porque sou contra os julgamentos mediáticos, a que um dia chamei 'os novos julgamentos populares'.
Mas importa fazer uma reflexão serena sobre o assunto.
1. As acusações de 'perseguição política'
Os socialistas e alguns apoiantes de Sócrates, como Freitas do Amaral, e o próprio primeiro-ministro, tentam colocar a questão no terreno político, dizendo tratar-se de uma 'perseguição', de uma 'campanha negra', em ano eleitoral. Esquecem-se, apenas, de que as notícias que têm sido publicadas se reportam à investigação inglesa. O timing é o de Inglaterra. Aliás, foram os ingleses que desbloquearam o processo que estava aqui encalhando, conduzindo às recentes buscas.
Será que a Justiça inglesa quer perseguir Sócrates politicamente? Ou, pelo
contrário, era a Justiça portuguesa que estava a proteger Sócrates?
2. O encontro entre Sócrates e Smith
Sócrates afirma que apenas participou numa reunião sobre o Freeport, na qual estiveram presentes outras pessoas, como o presidente da Câmara de Alcochete e representantes do outlet. Ora, esta reunião não tem nada a ver com aquela de que falou o tio. Júlio Monteiro disse que Charles Smith marcou a reunião com a secretária de Sócrates, depois de este lhe ter dito «Mande vir esse fulano falar comigo». Ora uma reunião oficial, envolvendo o ministro, um presidente de Câmara, etc., é tratada obrigatoriamente pelo chefe de gabinete e não pela secretária. Portanto, a reunião de que Sócrates fala e o encontro de que fala o tio são duas coisas diferentes. Alguém aqui está a faltar à verdade.
3. A aprovação_do secretário de Estado
Mostrando o seu distanciamento em relação ao assunto, Sócrates alega que o licenciamento foi feito com a assinatura do secretário de Estado. Ora isto, em vez de aliviar as suspeitas, pelo contrário, adensa-as.
Num caso de tão grande importância e delicadeza – envolvendo a alteração dos limites de uma ZPE (Zona de Protecção Especial) e pondo em causa compromissos tomados com Bruxelas – como entender que o ministro tenha remetido o assunto para um secretário de Estado? Num tema envolvendo, ainda, a família real britânica, a embaixada inglesa,
um investimento de centenas de milhões de euros, não seria natural que o ministro assumisse o licenciamento? Só por má consciência pode ter fugido a fazê-lo. Para se livrar de responsabilidades se o assunto viesse – como veio – a levantar suspeitas.
4. A urgência do processo
Sócrates não deu nenhuma explicação para a anormalíssima urgência com que o projecto foi tratado. É insólito um Governo de gestão aprovar um projecto tão polémico e alterar uma ZPE a três dias de cessar funções.
Mais: na véspera do dia em que, por ordem superior, tudo teria obrigatoriamente de estar pronto (14 de Março de 2002), havia cinco documentos oficiais em falta. Pois esses documentos foram obtidos em 24 horas! Houve pareceres entrados no Ministério já depois de encerrados os serviços e despachados ainda nesse dia! Isto só se compreende pela existência de compromissos assumidos com alguém. Com quem? E porquê?
5. A alteração da ZPE
José Sócrates, Silva Pereira (na entrevista a Mário Crespo), António Vitorino (na conversa com Judite de Sousa), e outros disseram que a alteração da ZPE não teve nada a ver com o Freeport. Ora este argumento é para atrasados mentais. Por uma simplicíssima razão: numa zona protegida não seria possível construir aquele gigantesco outlet.
Para provarem o contrário, dizem que o Estudo de Impacto Ambiental e o licenciamento foram aprovados antes da entrada em vigor dos novos limites da ZPE. Isto nem deveria ser invocado, pois só prova toda a irregularidade do processo. Como se vê pelos e-mails que hoje publicamos, a aprovação do Estudo de Impacto Ambiental e o licenciamento feito no Conselho de Ministros de 14 de Março foram obtidos através de generosas 'luvas' (chamadas «bribery»).
Os factos apontam todos na mesma direcção.
É inegável que na aprovação do Freeport houve uma situação de favor, desrespeitando regras elementares.
Também parece certo que foram pagas elevadas 'luvas', muito provavelmente em troca desses favores.
Só falta saber quem recebeu as 'luvas'.
E aqui a situação é desfavorável a Sócrates, já pelas pessoas mais directamente envolvidas na invulgar celeridade do processo (muitas delas suas subordinadas), já pela participação neste imbróglio de familiares seus (como o tio e um primo).
Falta acrescentar que esta é a mais grave suspeição que se levantou em Portugal relativamente a um governante.
E mesmo a nível internacional uma situação destas é invulgaríssima.
Porque – note-se – não estão em causa financiamentos partidários ilegais, como os que levaram, por exemplo, à condenação de Bettino Craxi.
Está em cima da mesa uma suspeita de corrupção em benefício próprio – que, do ponto de vista moral, é devastadora.
José Sócrates tem traços de personalidade semelhantes a João Vale e Azevedo: são ambos pessoas que acreditam com tanta força em certas inverdades que as dizem com a maior convicção.
Convicção essa que, aliás, ficou patente na comunicação ao país de 5.ª-feira.
P.S. – Respondendo a perguntas sobre este tema, Paulo Portas disse que o que lhe interessa é a Educação, a Saúde, o desemprego, etc., e que sempre foi contra retirarem-se consequências políticas dos casos judiciais. Ora, como director de O Independente, Portas foi o homem que mais escândalos políticos lançou em Portugal no passado recente. E que em sucessivos editoriais defendeu a demissão dos protagonistas desses supostos escândalos. A duplicidade tem limites...
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