O Lehman não era um banco qualquer. Tinha uma reputação acima de qualquer suspeita. Gordon Brown inaugurou a sua sede europeia há quatro anos, elogiando o seu contributo para a prosperidade do Reino Unido. Foi assessora de uma OPA concorrente à PT, que Miguel Pais do Amaral não chegou a formalizar. Ainda há poucos meses a CGD escolheu, entre dezenas de operações, nomear uma emissão de obrigações com o Lehman, porque a marca prestigiava o banco português. Sim, o prestígio era muito. O Lehman superou a grande depressão. Guerras mundiais. "Crashes" bolsistas. Crises asiáticas e latinas. Só não superou uma coisa: a sua própria ganância. Fecha as portas com entrada directa para o Guiness Book como a maior falência de sempre, seis vezes maior que a anterior, da Worldcom.
Ao deixar cair o Lehman, as autoridades financeiras baixam o nível de voluntarismo, embora seja evidente que, no mesmo dia, outro banco tenha sido salvo com a ajuda dessas autoridades. Perante o dilema clássico da mãe que têm dois filhos a afogar-se e só pode socorrer um, o Tesouro norte-americano investiu a sua energia na salvação da Merrill Lynch.
Num certo sentido, esta queda tem um aspecto bom para o mercado, pois revela a dor sem analgésicos, obrigando o mundo a enfrentar de vez que a situação é mais grave do que alguém se atreveu a enunciar. Ninguém previu esta crise. Mas todos previram o fim da crise cedo demais. Desde ontem, já ninguém diz que o pior já passou.
Este choque com a realidade, chamado Lehman, fez com que bancos centrais, governos e os próprios bancos assumam que neste jogo não há trunfos. Passaram a jogar com o baralho todo. O BCE (acusado de obstinação com a inflação) injectará toda a liquidez que for necessária. O Fed já aceita acções como garantia para conceder crédito. Uma inesperada Junta de Salvação entre os dez maiores bancos de Wall Street junta trapinhos num fundo de 70 mil milhões de dólares para o que der e não vier.
Já ninguém pergunta "como foi isto possível?", mas sim "quando é que isto acaba?". A falência do Lehman pode ter sido o princípio do fim ou, mais provavelmente, o fim do princípio, num rasto de destruição que tem destino marcado com mais instituições (próximo: AIG, a maior seguradora do mundo?). Mas é importante que se comece a pensar em como evitar que, utilizando a linguagem de Greenspan, este século não tenha outra crise como esta. Não basta dizer que é necessário ter mais e melhor regulação - o mundo pensava que a tinha. Os financeiros passaram a comportar-se como piratas sofisticados e sistematicamente à frente daqueles que os vigiam. Para ser verdade que este fim-de-semana marcou Wall Street para sempre, é preciso que não seja possível que o engenho de uns seja a má sorte de todos.
O sistema financeiro mentiu: aos clientes, investidores, auditores, "ratings", bancos centrais, aos governos - porque mentiu a si mesmo. Os banqueiros tiveram crédito de mais e credibilidade de menos. Podem voltar a ter todo o dinheiro do mundo, mas os seus cheques só voltarão a ter cobertura quando voltarmos a acreditar neles. E eles a acreditarem uns nos outros.
PS: o Lehman pagou quase 5,7 mil milhões de dólares em bónus aos seus gestores em 2007.
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