Segunda-feira passada, a meio da tarde, faço a A-6, em direcção a Espanha e na companhia de uma amiga estrangeira; quarta-feira de manhã, refaço o mesmo percurso, em sentido inverso, rumo a Lisboa. Tanto para lá como para cá, é uma auto-estrada luxuosa e fantasma. Em contrapartida, numa breve incursão pela estrada nacional, entre Arraiolos e Borba, vamos encontrar um trânsito cerrado, composto esmagadoramente por camiões de mercadorias espanhóis. Vinda de um país onde as auto-estradas estão sempre cheias, ela está espantada com o que vê: - É sempre assim, esta auto-estrada? - Assim, como? - Deserta, magnífica, sem trânsito? - É, é sempre assim. - Todos os dias? - Todos, menos ao domingo, que sempre tem mais gente. - Mas, se não há trânsito, porque a fizeram? - Porque havia dinheiro para gastar dos Fundos Europeus, e porque diziam que o desenvolvimento era isto. - E têm mais auto-estradas destas? - Várias e ainda temos outras em construção: só de Lisboa para o Porto, vamos ficar com três. Entre S. Paulo e o Rio de Janeiro, por exemplo, não há nenhuma: só uns quilómetros à saída de S. Paulo e outros à chegada ao Rio. Nós vamos ter três entre o Porto e Lisboa: é a aposta no automóvel, na poupança de energia, nos acordos de Quioto, etc. - respondi, rindo-me. - E, já agora, porque é que a auto-estrada está deserta e a estrada nacional está cheia de camiões? - Porque assim não pagam portagem. - E porque são quase todos espanhóis? - Vêm trazer-nos comida. - Mas vocês não têm agricultura? - Não: a Europa paga-nos para não ter. E os nossos agricultores dizem que produzir não é rentável. - Mas para os espanhóis é? - Pelos vistos... Ela ficou a pensar um pouco e voltou à carga: - Mas porque não investem antes no comboio? - Investimos, mas não resultou. - Não resultou, como? - Houve aí uns experts que gastaram uma fortuna a modernizar a linha Lisboa-Porto, com comboios pendulares e tudo, mas não resultou. - Mas porquê? - Olha, é assim: a maior parte do tempo, o comboio não 'pendula'; e, quando 'pendula', enjoa de morte. Não há sinal de telemóvel nem Internet, não há restaurante, há apenas um bar infecto e, de facto, o único sinal de 'modernidade' foi proibirem de fumar em qualquer espaço do comboio. Por isso, as pessoas preferem ir de carro e a companhia ferroviária do Estado perde centenas de milhões todos os anos. - E gastaram nisso uma fortuna? - Gastámos. E a única coisa que se conseguiu foi tirar 25 minutos às três horas e meia que demorava a viagem há cinquenta anos... - Estás a brincar comigo! - Não, estou a falar a sério! - E o que fizeram a esses incompetentes? - Nada. Ou melhor, agora vão dar-lhes uma nova oportunidade, que é encherem o país de TGV: Porto-Lisboa, Porto-Vigo, Madrid-Lisboa... e ainda há umas ameaças de fazerem outro no Algarve e outro no Centro. - Mas que tamanho tem Portugal, de cima a baixo? - Do ponto mais a norte ao ponto mais a sul, 561 km. Ela ficou a olhar para mim, sem saber se era para acreditar ou não. - Mas, ao menos, o TGV vai directo de Lisboa ao Porto? - Não, pára em várias estações: de cima para baixo e se a memória não me falha, pára em Aveiro, para os compensar por não arrancarmos já com o TGV deles para Salamanca; depois, pára em Coimbra para não ofender o prof. Vital Moreira, que é muito importante lá; a seguir, pára numa aldeia chamada Ota, para os compensar por não terem feito lá o novo aeroporto de Lisboa; depois, pára em Alcochete, a sul de Lisboa, onde ficará o futuro aeroporto; e, finalmente, pára em Lisboa, em duas estações. - Como: então o TGV vem do Norte, ultrapassa Lisboa pelo sul, e depois volta para trás e entra em Lisboa? - Isso mesmo. - E como entra em Lisboa? - Por uma nova ponte que vão fazer. - Uma ponte ferroviária? - E rodoviária também: vai trazer mais uns vinte ou trinta mil carros todos os dias para Lisboa. - Mas isso é o caos, Lisboa já está congestionada de carros! - Pois é. - E, então? - Então, nada. São os especialistas que decidiram assim. Ela ficou pensativa outra vez. Manifestamente, o assunto estava a fasciná-la. - E, desculpa lá, esse TGV para Madrid vai ter passageiros? Se a auto-estrada está deserta... - Não, não vai ter. - Não vai? Então, vai ser uma ruína! - Não, é preciso distinguir: para as empresas que o vão construir e para os bancos que o vão capitalizar, vai ser um negócio fantástico! A exploração é que vai ser uma ruína - aliás, já admitida pelo Governo - porque, de facto, nem os especialistas conseguem encontrar passageiros que cheguem para o justificar. - E quem paga os prejuízos da exploração: as empresas construtoras? - Naaaão! Quem paga são os contribuintes! Aqui a regra é essa! - E vocês não despedem o Governo? - Talvez, mas não serve de muito: quem assinou os acordos para o TGV com Espanha foi a oposição, quando era governo... - Que país o vosso! Mas qual é o argumento dos governos para fazerem um TGV que já sabem que vai perder dinheiro? - Dizem que não podemos ficar fora da Rede Europeia de Alta Velocidade. - O que é isso? Ir em TGV de Lisboa a Helsínquia? - A Helsínquia, não, porque os países escandinavos não têm TGV. - Como? Então, os países mais evoluídos da Europa não têm TGV e vocês têm de ter? - É, dizem que assim entramos mais depressa na modernidade. Fizemos mais uns quilómetros de deserto rodoviário de luxo, até que ela pareceu lembrar-se de qualquer coisa que tinha ficado para trás: - E esse novo aeroporto de que falaste, é o quê? - O novo aeroporto internacional de Lisboa, do lado de lá do rio e a uns 50 quilómetros de Lisboa. - Mas vocês vão fechar este aeroporto que é um luxo, quase no centro da cidade, e fazer um novo? - É isso mesmo. Dizem que este está saturado. - Não me pareceu nada... - Porque não está: cada vez tem menos voos e só este ano a TAP vai cancelar cerca de 20.000. O que está a crescer são os voos das low-cost, que, aliás, estão a liquidar a TAP. - Mas, então, porque não fazem como se faz em todo o lado, que é deixar as companhias de linha no aeroporto principal e chutar as low-cost para um pequeno aeroporto de periferia? Não têm nenhum disponível? - Temos vários. Mas os especialistas dizem que o novo aeroporto vai ser um hub ibérico, fazendo a trasfega de todos os voos da América do Sul para a Europa: um sucesso garantido. - E tu acreditas nisso? - Eu acredito em tudo e não acredito em nada. Olha ali ao fundo: sabes o que é aquilo? - Um lago enorme! Extraordinário! - Não: é a barragem de Alqueva, a maior da Europa. - Ena! Deve produzir energia para meio país! - Praticamente zero. - A sério? Mas, ao menos, não vos faltará água para beber! - A água não é potável: já vem contaminada de Espanha. - Já não sei se estás a gozar comigo ou não, mas, se não serve para beber, serve para regar - ou nem isso? - Servir, serve, mas vai demorar vinte ou mais anos até instalarem o perímetro de rega, porque, como te disse, aqui acredita-se que a agricultura não tem futuro: antes, porque não havia água; agora, porque há água a mais. - Estás a dizer-me que fizeram a maior barragem da Europa e não serve para nada? - Vai servir para regar campos de golfe e urbanizações turísticas, que é o que nós fazemos mais e melhor. Apesar do sol de frente, impiedoso, ela tirou os óculos escuros e virou-se para me olhar bem de frente: - Desculpa lá a última pergunta: vocês são doidos ou são ricos? - Antes, éramos só doidos e fizemos algumas coisas notáveis por esse mundo fora; depois, disseram-nos que afinal éramos ricos e desatámos a fazer todas as asneiras possíveis cá dentro; em breve, voltaremos a ser pobres e enlouqueceremos de vez. Ela voltou a colocar os óculos de sol e a recostar-se para trás no assento. E suspirou: - Bem, uma coisa posso dizer: há poucos países tão agradáveis para viajar como Portugal! Olha-me só para esta auto-estrada sem ninguém!
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