O Magalhães, o porco e o Sócrates (o outro)
01.10.2008, Santana Castilho
Fornecer tecnologia sem cuidar da literacia que a permite utilizar é
drasticamente pobre
Sobre o Magalhães (refiro-me ao computador português feito no
estrangeiro) já se escreveram muitos e interessantes comentários, uns
a favor e outros contra. Tudo visto, parece-me que resta uma
generalizada (mas para mim preocupante) aceitação da medida.
Ouviram-se escolas e professores sobre a iniciativa? Não, porque por
elas pensa a ministra, para quem o Magalhães constitui "o instrumento
principal da democratização do ensino"; ponderou-se o impacto que a
tecnologia tem na melhoria do aproveitamento escolar dos jovens,
analisando estudos disponíveis sobre a matéria, que concluíram pela
sua irrelevância? Não, porque o coordenador do Plano Tecnológico já
disse ao que vai: dois alunos por computador em 2010!
Dou de barato não saber que critérios presidiram à escolha deste
computador e não de outro, da Intel ou da empresa de Matosinhos, e
simplesmente não engulo a fantasia da ausência de custos para o
Estado. Mas o que acho verdadeiramente preocupante é a generalizada
adesão ao culto duma modernização pacóvia, que tudo resume ao mero
mercantilismo (e não utilitarismo, como muitos impropriamente referem
o conceito que, enquanto teoria filosófica, é coisa bem diferente). A
formação sólida, que constitui a missão da Escola e dos professores,
deve assentar numa clara hierarquia de valores: primeiro o
conhecimento puro, depois o instrumental. Mas o que se tem feito
ultimamente é a secagem das actividades cognitivas, substituindo-as
pelas meramente instrumentais. Foi assim que se trocaram clássicos da
literatura por textos ditos pragmáticos (simples formulários, notícias
jornalísticas ou mensagens publicitárias) e se preferiram as
actividades conducentes à aquisição de "competências" em detrimento
das actividades de forte componente cognitiva. Foi assim que se
enfraqueceu o ensino da Gramática, da Filosofia e da História e se
reforçaram iniciativas híbridas ("área projecto" e "estudo
acompanhado"). Surpreendente? Não, se tivermos em vista que quem
decide são tecnocratas deslumbrados pela tecnologia e convencidos que
os "bichavelhos" são suficientes para educar o povo.
Parece-me evidente que há mais gente satisfeita com este bodo de
Magalhães a eito que gente insatisfeita e ciente, como eu, de que as
crianças do ensino básico não vão aprender melhor a ler e a
interpretar o que lerem por causa dos computadores; ou de que não
aprenderão mais cedo e melhor a Matemática fundamental por via do
Magalhães; ou de que não se iniciarão precocemente na actividade de
pensar e perceber o que as rodeia, por via do portátil. E é aí que
reside o problema: fornecer tecnologia sem cuidar da literacia que a
permite utilizar é drasticamente pobre. O impacto da componente
cognitiva do ensino só pode ser comparado com o da sua vertente
instrumental por quem conhece as duas e tem do exercício profissional
uma autoridade que os tecnocratas desprezam. O tecnocrata é por norma
e por formação pouco sólida um fanático da tecnologia, que com ela se
satisfaz e nem sequer aprende com a natureza efémera de tantos
projectos tecnológicos (lembram-se do ensino assistido por computador,
do Minerva, do Nónio, das Cidades Digitais e do endereço electrónico
para cada português, entre outros?).
Stuart Mill referiu-se assim a esta questão fundamental do pensamento
e da natureza humana:
"É indiscutível que o ser cujas capacidades de prazer são baixas tem
uma maior possibilidade de vê-las inteiramente satisfeitas; e um ser
superiormente dotado sentirá sempre que qualquer felicidade que possa
procurar é imperfeita. (...) É melhor ser um ser humano insatisfeito
do que um porco satisfeito; um Sócrates insatisfeito do que um idiota
satisfeito. E se o idiota ou o porco têm opinião diferente, é porque
apenas conhecem o seu lado da questão. A outra parte da comparação
conhece ambos os lados..."
01.10.2008, Santana Castilho
Fornecer tecnologia sem cuidar da literacia que a permite utilizar é
drasticamente pobre
Sobre o Magalhães (refiro-me ao computador português feito no
estrangeiro) já se escreveram muitos e interessantes comentários, uns
a favor e outros contra. Tudo visto, parece-me que resta uma
generalizada (mas para mim preocupante) aceitação da medida.
Ouviram-se escolas e professores sobre a iniciativa? Não, porque por
elas pensa a ministra, para quem o Magalhães constitui "o instrumento
principal da democratização do ensino"; ponderou-se o impacto que a
tecnologia tem na melhoria do aproveitamento escolar dos jovens,
analisando estudos disponíveis sobre a matéria, que concluíram pela
sua irrelevância? Não, porque o coordenador do Plano Tecnológico já
disse ao que vai: dois alunos por computador em 2010!
Dou de barato não saber que critérios presidiram à escolha deste
computador e não de outro, da Intel ou da empresa de Matosinhos, e
simplesmente não engulo a fantasia da ausência de custos para o
Estado. Mas o que acho verdadeiramente preocupante é a generalizada
adesão ao culto duma modernização pacóvia, que tudo resume ao mero
mercantilismo (e não utilitarismo, como muitos impropriamente referem
o conceito que, enquanto teoria filosófica, é coisa bem diferente). A
formação sólida, que constitui a missão da Escola e dos professores,
deve assentar numa clara hierarquia de valores: primeiro o
conhecimento puro, depois o instrumental. Mas o que se tem feito
ultimamente é a secagem das actividades cognitivas, substituindo-as
pelas meramente instrumentais. Foi assim que se trocaram clássicos da
literatura por textos ditos pragmáticos (simples formulários, notícias
jornalísticas ou mensagens publicitárias) e se preferiram as
actividades conducentes à aquisição de "competências" em detrimento
das actividades de forte componente cognitiva. Foi assim que se
enfraqueceu o ensino da Gramática, da Filosofia e da História e se
reforçaram iniciativas híbridas ("área projecto" e "estudo
acompanhado"). Surpreendente? Não, se tivermos em vista que quem
decide são tecnocratas deslumbrados pela tecnologia e convencidos que
os "bichavelhos" são suficientes para educar o povo.
Parece-me evidente que há mais gente satisfeita com este bodo de
Magalhães a eito que gente insatisfeita e ciente, como eu, de que as
crianças do ensino básico não vão aprender melhor a ler e a
interpretar o que lerem por causa dos computadores; ou de que não
aprenderão mais cedo e melhor a Matemática fundamental por via do
Magalhães; ou de que não se iniciarão precocemente na actividade de
pensar e perceber o que as rodeia, por via do portátil. E é aí que
reside o problema: fornecer tecnologia sem cuidar da literacia que a
permite utilizar é drasticamente pobre. O impacto da componente
cognitiva do ensino só pode ser comparado com o da sua vertente
instrumental por quem conhece as duas e tem do exercício profissional
uma autoridade que os tecnocratas desprezam. O tecnocrata é por norma
e por formação pouco sólida um fanático da tecnologia, que com ela se
satisfaz e nem sequer aprende com a natureza efémera de tantos
projectos tecnológicos (lembram-se do ensino assistido por computador,
do Minerva, do Nónio, das Cidades Digitais e do endereço electrónico
para cada português, entre outros?).
Stuart Mill referiu-se assim a esta questão fundamental do pensamento
e da natureza humana:
"É indiscutível que o ser cujas capacidades de prazer são baixas tem
uma maior possibilidade de vê-las inteiramente satisfeitas; e um ser
superiormente dotado sentirá sempre que qualquer felicidade que possa
procurar é imperfeita. (...) É melhor ser um ser humano insatisfeito
do que um porco satisfeito; um Sócrates insatisfeito do que um idiota
satisfeito. E se o idiota ou o porco têm opinião diferente, é porque
apenas conhecem o seu lado da questão. A outra parte da comparação
conhece ambos os lados..."
Professor do Ensino Superior
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