sexta-feira, 29 de maio de 2009

"Este é o maior fracasso da democracia portuguesa", por Clara Ferreira Alves

> Eis parte do enigma. Mário Soares, num dos momentos de lucidez que ainda vai tendo, veio chamar a atenção do Governo, na última semana,
> para a voz da rua.
>
> A lucidez, uma das suas maiores qualidades durante uma longa carreira
> politica. A lucidez que lhe permitiu escapar à PIDE e passar um bom
> par de anos, num exílio dourado, em hotéis de luxo de Paris.
>
> A lucidez que lhe permitiu conduzir da forma "brilhante" que se viu o
> processo de descolonização.
>
> A lucidez que lhe permitiu conseguir que os Estados Unidos
> financiassem o PS durante os primeiros anos da Democracia.
>
> A lucidez que o fez meter o socialismo na gaveta durante a sua
> experiência governativa.
>
> A lucidez que lhe permitiu tratar da forma despudorada amigos como
> Jaime Serra, Salgado Zenha, Manuel Alegre e tantos outros.
>
> A lucidez que lhe permitiu governar sem ler os "dossiers".
>
> A lucidez que lhe permitiu não voltar a ser primeiro-ministro depois
> de tão fantástico desempenho no cargo.
>
> A lucidez que lhe permitiu pôr-se a jeito para ser agredido na Marinha
> Grande e, dessa forma, vitimizar-se aos olhos da opinião pública e
> vencer as eleições presidenciais.
>
> A lucidez que lhe permitiu, após a vitória nessas eleições, fundar um
> grupo empresarial, a Emaudio, com "testas de ferro" no comando e um
> conjunto de negócios obscuros que envolveram grandes magnatas
> internacionais.
>
> A lucidez que lhe permitiu utilizar a Emaudio para financiar a sua
> segunda campanha presidencial.
>
> A lucidez que lhe permitiu nomear para Governador de Macau Carlos
> Melancia, um dos homens da Emaudio.
>
> A lucidez que lhe permitiu passar incólume ao caso Emaudio e ao caso
> Aeroporto de Macau e, ao mesmo tempo, dar os primeiros passos para uma
> Fundação na sua fase pós-presidencial.
>
> A lucidez que lhe permitiu ler o livro de Rui Mateus, "Contos
> Proibidos", que contava tudo sobre a Emaudio, e ter a sorte de esse
> mesmo livro, depois de esgotado, jamais voltar a ser publicado.
>
> A lucidez que lhe permitiu passar incólume as "ligações perigosas" com
> Angola, ligações essas que quase lhe roubaram o filho no célebre
> acidente de avião na Jamba (avião esse carregado de diamantes, no
> dizer do Ministro da Comunicação Social de Angola).
>
> A lucidez que lhe permitiu, durante a sua passagem por Belém, visitar
> 57 países ("record" absoluto para a Espanha - 24 vezes - e França -
> 21), num total equivalente a 22 voltas ao mundo (mais de 992 mil
> quilómetros).
>
> A lucidez que lhe permitiu visitar as Seychelles, esse território de
> grande importância estratégica para Portugal.
>
> A lucidez que lhe permitiu, no final destas viagens, levar para a
> Casa-Museu João Soares uma grande parte dos valiosos presentes
> oferecidos oficialmente ao Presidente da Republica Portuguesa.
>
> A lucidez que lhe permitiu guardar esses presentes numa caixa-forte
> blindada daquela Casa, em vez de os guardar no Museu da Presidência da
> Republica.
>
> A lucidez que lhe permite, ainda hoje, ter 24 horas por dia de
> vigilância paga pelo Estado nas suas casas de Nafarros, Vau e Campo
> Grande.
>
> A lucidez que lhe permitiu, abandonada a Presidência da Republica,
> constituir a Fundação Mário Soares. Uma fundação de Direito privado,
> que, vivendo à custa de subsídios do Estado, tem apenas como única
> função visível ser depósito de documentos valiosos de Mário Soares. Os
> mesmos que, se são valiosos, deviam estar na Torre do Tombo.
>
> A lucidez que lhe permitiu construir o edifício-sede da Fundação
> violando o PDM de Lisboa, segundo um relatório do IGAT, que decretou a
> nulidade da licença de obras.
>
> A lucidez que lhe permitiu conseguir que o processo das velhas
> construções que ali existiam e que se encontrava no Arquivo Municipal
> fosse requisitado pelo filho e que acabasse por desaparecer
> convenientemente num incêndio dos Paços do Concelho.
>
> A lucidez que lhe permitiu receber do Estado, ao longo dos últimos
> anos, donativos e subsídios superiores a um milhão de contos.
>
> A lucidez que lhe permitiu receber, entre os vários subsídios, um de
> quinhentos mil contos, do Governo Guterres, para a criação de um
> auditório, uma biblioteca e um arquivo num edifico cedido pela Câmara
> de Lisboa.
>
> A lucidez que lhe permitiu receber, entre 1995 e 2005, uma subvenção
> anual da Câmara Municipal de Lisboa, na qual o seu filho era Vereador
> e Presidente.
>
> A lucidez que lhe permitiu que o Estado lhe arrendasse e lhe pagasse
> um gabinete, a que tinha direito como ex-presidente da República,
> na... Fundação Mário Soares.
>
> A lucidez que lhe permite que, ainda hoje, a Fundação Mário Soares
> receba quase 4 mil euros mensais da Câmara Municipal de Leiria.
>
> A lucidez que lhe permitiu fazer obras no Colégio Moderno, propriedade
> da família, sem licença municipal, numa altura em que o Presidente
> era... João Soares.
>
> A lucidez que lhe permitiu silenciar, através de pressões sobre o
> director do "Público", José Manuel Fernandes, a investigação
> jornalística que José António Cerejo começara a publicar sobre o tema.
>
> A lucidez que lhe permitiu candidatar-se a Presidente do Parlamento
> Europeu e chamar dona de casa, durante a campanha, à vencedora Nicole
> Fontaine.
>
> A lucidez que lhe permitiu considerar Jose Sócrates "o pior do
> guterrismo" e ignorar hoje em dia tal frase como se nada fosse.
>
> A lucidez que lhe permitiu passar por cima de um amigo, Manuel Alegre,
> para concorrer às eleições presidenciais uma última vez.
>
> A lucidez que lhe permitiu, então, fazer mais um frete ao Partido Socialista.
>
> A lucidez que lhe permitiu ler os artigos "O Polvo" de Joaquim Vieira
> na "Grande Reportagem", baseados no livro de Rui Mateus, e assistir,
> logo a seguir, ao despedimento do jornalista e ao fim da revista.
>
> A lucidez que lhe permitiu passar incólume depois de apelar ao voto no
> filho, em pleno dia de eleições, nas últimas Autárquicas.
>
> No final de uma vida de lucidez, o que resta a Mário Soares? Resta um
> punhado de momentos em que a lucidez vem e vai. Vem e vai. Vem e vai.
>
> Vai... e não volta mais.
>
>
> Clara Ferreira Alves
>
> Expresso

http://ferrao.org/2008/03/rui-mateus-contos-proibidos.html

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